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FENATIB: para ser criança sempre.

Valmor Níni Beltrame

O Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau – FENATIB, em sua 21ª edição, no ano de 2018, consolida, cada vez mais, seu perfil formativo ao agregar 4 eixos de atividades que precisam ser vistos de modo indissociado. Trata-se da apresentação de espetáculos e seus debates, a realização do Seminário de Estudos sobre Teatro para Crianças e Jovens, o oferecimentos de cursos ou oficinas, a publicação da Revista Panacea, e a Revista do FENATIB, em seus formatos on line e impresso. Teresinha Heimann, sua idealizadora e organizadora, acredita que “o teatro é atividade inseparável da reflexão e do confronto com teorias. A criação artística, o fazer teatral, associados ao pensamento crítico são indispensáveis para a produção do conhecimento.” Por isso, defende o formato do Festival que integra a fruição do espetáculos com diferentes maneiras de compartilhar os conhecimentos produzidos, seja na prática de montagem de espetáculos, seja na pesquisa realizada nas Universidades ou junto aos Grupos de Teatro.

A presença do Teatro de Animação, em suas diferentes formas de expressão continua chamando a atenção no Programa do Festival em quase todas as suas edições, desde o seu início no ano de 1997. Neste ano de 2018, mais 50% dos espetáculos trabalhavam com bonecos, máscaras, sombras e objetos, demonstrando com isso, a diversidade de expressões do campo do Teatro de Animação utilizadas nos espetáculos. Ao mesmo tempo, confirma a hibridação como procedimento criativo que caracteriza grande parte das montagens cênicas produzidas hoje. Apropriar-se de diferentes recursos expressivos enriquece o espetáculo, provoca a imaginação do espetador e estimula a atualização profissional dos artistas envolvidos em cada encenação.[1]

Neste sucinto artigo, me detenho na reflexão sobre os debates realizados com os Grupos de Teatro, ou seja, uma das ações que integram o conjunto de atividades formativas do FENATIB. Concentro minha análise sobre dois destes espetáculos, parte delas explicitadas nos debates, nas conversas com os elencos, e isso se deve ao fato de os dois trabalharem com Teatro de Animação e por explorarem recursos diferentes desta arte: Teatro de Sombras e o Teatro de Bonecos Popular. Refiro-me à O Marujo e a tempestade, da Cia. Lumbra, de Porto Alegre; e Exemplos de Bastião, do Mamulengo sem Fronteiras, de Brasília.

A peça O marujo e a tempestade, acontece dentro de uma grande bolha de tecido branco, espaço cênico na qual a Cia. Lumbra apresenta a história de amor vivida pelo marujo e sua amada. A viagem, a despedida, o encontro, a paixão, a tempestade, o naufrágio, e o surpreendente papel da mulher são os elementos que compõem a narrativa destituída de palavras. Elas não fazem falta. As imagens, a partitura de ações, os sons e as músicas selecionadas são suficientes. Os elementos oferecidos ao espectador são os necessários para ele acompanhar o acontecimento cênico porque aborda temas fundamentais da vida de todo ser humano: viver, amar, trabalhar, morrer…

Programada para realizar três apresentações na Praça do Teatro Carlos Gomes, o mau tempo fez com que duas delas se realizassem no interior do Teatro, apenas a última sessão se deu na Praça. A apresentação de teatro de sombras numa praça constitui um desafio técnico com muitas questões a superar: a interferência de outras fontes de luz incidindo sobre a tela, os incontroláveis ruídos do espaço urbano, os diversos apelos que disputam a atenção do espectador. Mas tudo isso é superado pela experiência e pelo conhecimento de Alexandre Fávero, Fabiana Bigarella e Temis Nicolaidis, em muitos anos de trabalho e pesquisa no Teatro de Sombras.

Ao criar a Bolha Luminosa, a Lumbra, além de explorar um novo espaço de expressão, instiga a reflexão sobre este aspecto no universo do teatro de sombras. É importante perceber que a bolha de tecido é a tela que cumpre a importante função de receptora das sombras, e simultaneamente, objeto cenográfico no espaço. Seu formato pode sugerir diferentes leituras como útero materno, o oceano, o universo, mas isso depende da sensibilidade e das referências de cada espectador. A encenação apenas sugere, estimula.

No entanto, para os que praticam o Teatro de Sombras remete a pensar que a tela já não é superfície e nem somente o suporte para o que se mostra. Jacques Derridá,[2] em seu estudo sobre as artes do visível, afirma que: Não se deve separar o suporte da obra […] Ora, essa unicidade está ligada a indissociabilidade de que estou falando: qualquer que seja sua matéria, o corpo do suporte é uma parte indissociável da obra (2012, p. 287). A Bolha Luminosa remete a impossibilidade dessa separação, há uma unicidade entre a narrativa dramatúrgica, as imagens, os sons e o que convencionamos denominar de tela. A bolha não é suporte para o que ali acontece. Não é acessório da encenação de O Marujo e a Tempestade, ela também é o espetáculo cênico. Mais que suporte e superfície ela também é a obra. Com isso a Lumbra provoca a reflexão sobre a própria linguagem do Teatro de Sombras e suas possibilidades expressivas e cênicas. O que é apresentado é tão importante quanto o como se mostra e com o que se mostra.

Num segundo momento do espetáculo, o ator Alexandre Fávero, rompe o espaço e passa a atuar do lado de fora da Bolha. Aí se dá a revelação dos procedimentos evidenciando ao público a silhueta e os materiais de que são feitas as personagens; o foco luminoso que projeta as imagens e a performance de Alexandre. Ele não é um mostrador das imagens, mas o ator que, com seus gestos e movimentos, seleciona e escolhe o que o público vê para narrar a saga do Marujo. Ver a sua atuação, as silhuetas recortadas em diversos materiais e as imagens projetadas também são elementos indissociáveis.

Na sequência, as sombras são mostradas no piso da praça, na fachada do Teatro, nas árvores e nos corpos do público presente. Isso ocorre ora, sobre parte da plateia, ora sobre o peito de um só espectador. Há neste momento a percepção da inexistência de fronteiras para o jogo com as sombras e junto, o convite para a sua descoberta, para brincar com ela. Eduardo Galeano sintetiza bem o que isso pode significar: (…) ele viu o que até então havia olhado sem ver: grudada a seus pés, jazia a sombra mais longa que seu corpo. Caminhou, correu. Onde ele ia, fosse onde fosse, a perseguidora sombra ia com ele (GALEANO, 2012, p. 17)[3]. O sentido de descoberta ou de redescoberta está relacionado com o ver de outro modo, o não habitual, o de se surpreender com o não percebido no que é cotidiano.

A apresentação só encerra com a etapa procedente em que o público adentra a Bolha. Entram pequenos grupos, cada um brinca a seu modo observando as imagens de seu próprio corpo, as dos outros, ou manipulando um boneco silhueta. Para muitos, crianças ou adultos, é um acontecimento carregado de surpresas, de descobertas e pode ser compreendido como o que Jorge Larrosa Bondía denomina de experiência: É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.[4]

O que a Cia. Lumbra tanto busca com este trabalho pode ai se efetivar: viver uma experiência sensorial que mistura teatro, espetáculo e interatividade em uma performance para todas as idades. Ou como diz o Programa do Festival: É uma atividade para ver, entrar e brincar.[5] E para que essa experiência ocorra basta ver, entrar na Bolha e se arriscar a brincar. E foi o que sucedeu naquela noite na Praça do Teatro.

 O outro trabalho, Exemplos de Bastião, do Mamulengo sem Fronteiras, de Brasília, se apropria de diferentes expressões do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste do Brasil: o Mamulengo, o Babau, o Cassimiro Coco, o João Redondo. O espetáculo conta a saga de Bastião, que quer casar com Rosinha Bole Bole e por causa disso se mete em grandes encrencas com o autoritário Capitão João Redondo. Eles se casam, nasce o bebê e enfrentam muitos problemas com bichos peçonhentos e fantásticos que tentam impedir a alegria do casal. No final, o batizado se transforma numa grande festa.

A apropriação de elementos da cultura regional/popular na montagem de espetáculos de teatro de bonecos não é fenômeno recente. Desde os anos de 1960/70 essa prática é comum. Alguns elementos que nortearam a criação de espetáculos naquela época ainda hoje são utilizados, como por exemplo, a recriação de lendas, folguedos e falares do povo, músicas e sonoridades. Os espetáculos criados sob essa perspectiva, e se mantêm vivos provocando boa repercussão são os que, ao invés de transpor expressões populares para o palco, as recriam, as reinventam, incluindo elementos que tornam o espetáculo universal, ampliando as fronteiras do seu sentido e compreensão regional.

O novo nesta prática reside no fato de contribuírem para o fortalecimento de identidades, ultrapassando os limites do que se poderia configurar como espetáculo baseado na cultura local, como algo pitoresco ou exótico.

 O trabalho de Walter Cedro faz isso com pertinência e se alinha a prática de outros importantes artistas brasileiros como: Chico Simões, em Brasília; Augusto Bonequeiro, em Fortaleza; Waldeck de Garanhuns, em São Paulo e Fernando Augusto Santos, em Olinda. Coloco estes artistas numa só moldura porque ainda que existam diferenças na forma de criar e apresentar seus trabalhos, eles têm em comum, a prática da recriação do popular/regional.

Personagens como Tiridá, Benedito, Simão, João Redondo, entre outros, presentes nos espetáculos destes artistas, reforçam e colaboram na construção de identidades, uma ideia de pertencimento que vai se esboçando e realizando na conduta das personagens e na poética dos seus espetáculos. A ideia de “diferença” que permeia a forma de ser destas personagens e o universo na qual se situam é vista e tratada como elementos que constroem um jeito de ser, outro modo de ver e estar no mundo. A diferença é tratada com irreverência e insubordinação diante de uma realidade adversa; o jeito peculiar de falar e se comportar denota resistência contra injustiças sociais, políticas e imposições de uma cultura estranha, alienante.

Estes espetáculos se situam na contramão daquilo que vivemos atualmente onde a diferença não é aceita, a diferença provoca medos e violência. Muitas vezes, hoje, o diferente é ameaça, o diferente é o que deve ser evitado e silenciado. Mas, os Beneditos, Simãos e Tiridás, se comportam de maneira oposta, reforçam a importância da diferença e colaboram, insisto, na construção de identidades, evidenciando que não existe uma cultura, mas muitas culturas. Contribuem assim para a compreensão de existência de um pluralismo cultural fundamental em qualquer democracia.

Um dos aspectos que chama a atenção neste espetáculo é o modo como Walter Cedro e os três músicos que o acompanham em cena envolviam a plateia. As crianças, na faixa etária de 7 a 11 anos, interagiam, participavam de modo intenso e entraram no jogo ficcional de modo surpreendente. Terminada a apresentação, Walter iniciou uma demonstração sobre como foram confeccionados os bonecos e como ele procedia na atuação. Perguntou para as crianças quais bonecos gostariam de ver, ali, fora da cena. A cobra, disseram alguns. Ao demonstrar como procedia com aquele boneco, um boneco de luva no qual se deve colocar a mão e o braço dentro do corpo, feito de tecido e mover a boca com a mão, a reação das crianças foi de discordância imediata: – Não! Ali (e apontavam para a empanada onde aconteceu a cena) não tinha nada disso. Não tinha mão, era a cobra mesmo! Walter, obedecendo a pedidos, mostrou outros bonecos, como o Bebê deitado na rede, Rosinha Bole Bole, o Jaraguá e a mesma convicção das crianças persistia em relação aos personagens bonecos. Insistiam que, na empanada, os bonecos não precisavam de mão, nem de braço. Eles estavam vivos. Seus movimentos, seus olhares e vozes eram de total certeza de que o que haviam visto era verdadeiro. E era. Impossível não lembrar Ricardo Piglia quando escreve: A maravilha da infância é que tudo é real (2017, p.37).[6] Ao perceber a própria incapacidade de demovê-las dessa opinião, o bonequeiro decidiu concluir: – vocês tem toda razão, ali atrás do pano tudo é mistério, e esses bonecos são mesmo uns danados!

Se nós adultos sabemos que os bonecos apresentados por Walter são manipulados, que é indispensável a presença, a atuação do ator, parece que isso nem sempre ocorre com as crianças. A capacidade de tornar crível os acontecimentos, estabelecendo um pacto ficcional profundo e duradouro com elas, nos remete a pensar sobre a força do boneco animado na cena, sua capacidade de convencimento, as responsabilidades do artista e do Teatro de Animação. Como afirma a diretora francesa Claire Heggen ao se referir ao teatro de animação e ao trabalho do marionetista:

O objeto já não é um mero objeto material, maneira para ser manipulada: ele acede ao estatuto de metáfora, de símbolo, de ideia que nos transporta em espírito. (…) É a maneira de investir o objeto, de magnetizá-lo, que leva o espectador a se iludir, a crer na ficção proposta. Nesse momento, essa ficção conta, diz, enuncia e anuncia algo de outra esfera que não a material, mais filosófica, metafísica, espiritual (2008, p. 61)[7].

Mais do que manipular bonecos ou objetos, o artista anima expectativas e sonhos, e o envolvimento emocional do público pode constituir uma experiência na qual a fruição do espetáculo o transporta para outra condição, já não mais a de mero espectador. Colabora para que adulto e criança reflitam mais profundamente sobre a sua situação e condição no mundo.

 Para finalizar – O conteúdo das palestras proferidas no Seminário de Estudos, realizado nos três primeiros dias do Festival, “contaminaram” os debates e análises dos espetáculos. A apresentação, neste texto, de parte do debate de dois trabalhos: A Bolha Luminosa e Exemplos de Bastião resume, de modo especial, a necissidade de se continuar refletindo sobre o teatro feito para crianças e jovens. Aliás, as discussões sobre este tema ganham importânica porque o contexto social e político que envolve a situação da infância em nosso país e na América Latina é preocupante, e o teatro comprometido em contribuir com as mudanças destas realidades precisa evidenciar a existência de múltiplas e diferentes infâncias e, sobretudo, infâncias desiguais. O breve texto Os alunos[8], de Eduardo Galeano, situa e sintetiza boa parte dessas inquietações que permearam os debates e as conversas durante o FENATIB de 2018:

Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser crianças.

Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.

O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.

O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo.

E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo como destino, a vida prisioneira.

Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças (GALEANO, 1999, p. 97).

Galeano, neste pequeno texto, nos estimula a buscar um teatro que privilegie o ser humano no movimento entre a criança que precisa ser respeitada como tal e o adulto que tem dentro de si a criança que ele já foi; nos incita a pensar sobre por que vivemos e quais os sentidos de estarmos aqui e agora. Para o desenvolvimento desse nível de consciência e de apreensão do espaço-tempo, a ludicidade e a poesia presentes nas encenações são essenciais ferramentas.


[1] Estes são os nove espetáculos que, cada um a seu modo, trabalhavam com manifestações do Teatro de Animação: Vozes de Abrigo, da Cia. Laica, de Curitiba; Fadas, da EssaÉ Cia, de Joinville, O Marujo e a Tempestade – Bolha Luminosa, da Cia Lumbra Teatro, de Porto Alegre; Acampatório, da Cia Truks, de São Paulo; Boquinha… E assim surgiu o mundo; Brincando com Lixo, da Cia Beto malabares, de Gaspar; Exemplos de Bastião, do Mamulengo sem Fronteiras, de Brasília; A mulher que matou os peixes, da Ateliê Voador, de Salvador; O Maior Menor espetáculo da Terra, da Cia. ETC e Tal, do Rio de Janeiro.

[2] DERRIDÁ, Jacques. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.

[3] GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 2004. Tradução de Eric Nepomuceno.

[4] BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acessado dia 04\05\1017.

[5] Programa do 21º Festival Nacional de Teatro para Crianças e Jovens. Blumenau, 2018, página 6.

[6] PIGLIA, Ricardo. Anos de formação: Os diários de Emilio Renzi. São Paulo: Todavia, 2017.

[7] HEGGEN, Claire. Sujeito – Objeto: entrevistas e negociações. In Revista Móin-Móin. Jaraguá do Sul: SCAR – UDESC, 2009. N.6. Tradução Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro.

[8] GALEANO, Eduardo. Os Alunos. In De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999.